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Você sabia que a lenda do Negrinho do Pastoreio tem mais de uma versão? Conheça as principais.

Você sabia que a lenda do Negrinho do Pastoreio tem mais de uma versão? Conheça as principais.


O Negrinho do Pastoreio é um personagem do folclore brasileiro, mais especificamente da região sul do país. Há quem o cultue como uma divindade.

Diz a versão mais popular da lenda que o Negrinho era um jovem escravo que perdeu a tropilha de cavalos que pastoreava e, por isso, foi castigado até a morte. Mas milagrosamente ele ressurgiu, ao lado da Virgem Maria, agora com seu próprio cavalo e sua própria tropilha, e ainda hoje cavalga pelos campos do Rio Grande do Sul.

Dizem que se você está procurando algum objeto perdido basta acender uma vela ao Negrinho que ele o ajuda a achar. Se ele não encontrar, ninguém mais encontra.

Mas a lenda do Negrinho do Pastoreio tem mais de uma versão, sendo a mais antiga da metade do século XIX. Vamos conhecer algumas delas.

Escravo negro conduzindo tropas na província do Rio Grande, por Jean-Baptiste Debret (1768-1848)

A versão de Câmara Cascudo

Para começar, vejamos o que diz uma grande autoridade no assunto, o pesquisador da cultura brasileira Luís da Câmara Cascudo, no seu Dicionário do Folclore Brasileiro:

Um negrinho, escravo de estancieiro rico e mau, somítico e perverso, perdeu a tropilha de cavalos baios que pastoreava, e foi mandado surrar barbaramente pelo amo. Ainda sangrando, atiraram-no dentro de um formigueiro, onde o negrinho faleceu. Reapareceu, na lenda compensadora do seu martírio, montando um baio, à frente de uma nova tropilha, invisível, mas identificável pelo som, percorrendo as campinas.

Em outro trecho do verbete, Câmara Cascudo confirma o caráter católico da lenda, lembrando que esporadicamente, em diversos pontos do Brasil, ocorrem atos de devoção ao Negrinho, que se tornou uma divindade à qual as pessoas recorrem para encontrar objetos perdidos.

A versão mais antiga: uma lenda que vem dos escravos

Como outras manifestações da cultura popular, a lenda do Negrinho do Pastoreio foi sendo transmitida oralmente ao longo dos anos.

Mas existem registros escritos da lenda. E o mais antigo, segundo o historiador Elomar Tambara, da Universidade Federal de Pelotas, é de 1857.

No Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, António Maria do Amaral Ribeiro, vice-cônsul de Portugal no Brasil na época do Império, chama de “absurda”, “ridícula” e “exótica” a “superstição” que ele conheceu quando esteve na antiga Província do Rio Grande do Sul.

Era comum, segundo ele, encontrar à noite tocos de velas acesas em lugares pouco frequentados, geralmente nos cantinhos dos quintais. Os responsáveis pelo pequeno ritual eram escravos que pediam ao “Crioulinho do Pastoreio” para amansar seus senhores.

Era um negrinho crioulo, escravo de um mau senhor, que lhe dava um punhado de farinha para ele comer por dia, com a obrigação de trazer a mesma porção quando regressasse de apascentar [pastorear] o gado, e a quem este, para o livrar das sevícias [castigos] de seu senhor, não só subministrava a farinha precisa para viver e levar para casa, como também por ele cumpria a tarefa que lhe era imposta! Ouvireis a tia Rosa nos seus cantares descrever os tratos que ao Crioulinho do Pastoreio aplicava seu mau senhor, como o fazê-lo dormir sobre um formigueiro!

Viu como esta versão é diferente?

Para começo de conversa, o Negrinho não comete nenhuma falta, não perde nenhum cavalo. É punido porque seu senhor é cruel, e fim de papo. E embora o Negrinho novamente apareça como uma divindade, não há nenhuma referência a elementos da religião católica. Trata-se de uma lenda que faz parte da cultura dos escravos africanos. O contexto de violência, privação e exploração que caracterizou o longo período da escravidão no Brasil assume o primeiro plano.

O motivo de devoção também muda. Não se trata mais de apelar ao santo para encontrar objetos perdidos.

De acordo com a versão mais antiga de que se tem notícia, vemos que a lenda surge de um grupo social específico: os escravos, que, devido aos maus tratos, rogavam ao Negrinho para sossegar o ímpeto violento dos seus senhores.

Segunda versão: o tema dos objetos perdidos

Na versão do historiador Alfredo Varela, de 1897, notam-se algumas diferenças em relação à primeira. Como na versão de Câmara Cascudo, o Negrinho perde um cavalo que estava sob sua vigilância. Seu senhor então o ameaça: se não o encontrar, será castigado. E depois de um dia e uma noite à procura do animal, tem de voltar à fazenda com as mãos abanando.

O senhor, então, fê-lo matar sob o açoite; para esconder o nefando crime, ordenou que o enterrassem, sendo escolhido um lugar em que seria difícil de descobrir o cadáver: um desses grandes formigueiros existentes no país, no fundo do qual foi escondido o mísero descendente da raça sacrificada.

No dia seguinte, pela manhã, quando o fazendeiro passava nas proximidades de casa e não longe da cova da vítima, estacou espantado, avistando o negrinho a quem encarregava de pastorear seus animais, o qual, de pé, à boca da passageira sepultura, sacudia de cima de si as formigas e a terra de que o tinham coberto, feito o que, saltando sobre o petiço [cavalo pequeno] perdido e que no momento ali se achava, desapareceu para sempre.

Outro elemento novo nesta versão da lenda, além do descuido com o cavalo, é o ressurgimento do Negrinho após a morte.

É neste registro, que consta no livro Rio Grande do Sul, que aparece pela primeira vez o tema dos objetos perdidos. Para encontrá-los, os devotos preparavam uma oferenda ao Negrinho com um toco de vela e um naco de fumo.

A versão mais conhecida e a cristianização da lenda

Painel de Aldo Locatelli (1915-1962), que está no Palácio Piratini, representa a ressurreição do Negrinho.

Quase 50 anos depois do primeiro registro, o escritor João Simões Lopes Neto deu forma literária à lenda do Negrinho do Pastoreio, acrescentando cenas e personagens que não existiam nas versões anteriores. O que havia antes eram registros. Lopes Neto transformou a lenda em conto.

De acordo com o pesquisador Elomar Tambara, esta versão, que se tornou a mais conhecida, é a responsável por introduzir o conteúdo cristão que caracteriza a lenda até os dias de hoje. O Negrinho, que não tem padrinhos, é apresentado como afilhado de Nossa Senhora. Além disso, é possível comparar a sua trajetória com a de Cristo, já que ambos são martirizados até a morte e depois ressuscitam.

A história começa com uma corrida de cavalos: uma aposta entre dois vizinhos, valendo dinheiro, para ver qual fazenda possui o cavalo mais rápido. Um dos responsáveis pela montaria é o Negrinho, que perde a disputa, e por isso é chicoteado e obrigado ficar 30 dias seguidos pastoreando cavalos.

Logo na primeira madrugada, enquanto o Negrinho dorme encostado a um cupinzeiro, todos os cavalos desaparecem. Ele novamente é castigado e recebe ordens do fazendeiro para encontrar a tropa perdida.

Como já era noite, ele pega uma vela do altar de Nossa Senhora para iluminar seu caminho. Ele finalmente encontra os cavalos, que desta vez não fogem. Mas, durante a madrugada, antes do Negrinho despertar, o filho do fazendeiro, tão ou mais cruel que o pai, espanta os cavalos de propósito só para ver o Negrinho apanhar de novo. E é o que acontece. Mas agora a surra é tanta que o Negrinho morre e seu corpo é atirado num formigueiro.

Dias depois, o fazendeiro se espanta com o que vê em frente ao formigueiro:

[…] o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!… O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos… e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu… Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.

E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pelo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.

E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu.

Desde então, quando se perde alguma coisa, basta pedir ao Negrinho que ele encontra. Mas não se pode esquecer da vela! A vela serve para o Negrinho repor aquela que ele tirou do altar de Nossa Senhora.

Por que a lenda mudou tanto? Uma explicação sociológica

Como vimos, de 1857 para cá a lenda do Negrinho do Pastoreio passou por muitas mudanças, com a inclusão de personagens, cenas e importantes alterações de conteúdo. Mas por que será que isso aconteceu?

Claro que, por ser originalmente uma história oral, é de se imaginar que modificações ocorram de geração para geração. Já brincou de telefone sem fio? Pois é. A lógica é a mesma. Agora imagine isso ao longo de quase dois séculos.

Mas há outra explicação para a metamorfose da lenda do Negrinho. E quem chama a atenção para isso é o pesquisador Elomar Tambara. Segundo ele, há pelo menos duas transformações importantes na lenda.

A primeira é a introdução do tema do extravio, que não existe na versão mais antiga. A história que chegou até nós dá conta de um Negrinho que comete uma falta, perde a tropilha de cavalos, e por isso é punido. Essa mudança vem acompanhada de uma nova devoção. Se na época da escravidão o Negrinho era invocado por escravos para amansar seus senhores, hoje ele é conhecido como uma entidade que encontra objetos perdidos. A lenda perdeu o seu caráter mais social, de luta de classes, que existia originalmente.

A segunda transformação importante é a cristianização da lenda. Repare que na versão mais antiga não há qualquer referência a elementos católicos. O que existe é uma crença disseminada entre escravos africanos ou afrodescendentes. E só. Ao longo dos anos, e principalmente após o tratamento literário de João Simões Lopes Neto, a lenda foi cristianizada, e assim ficou.

Segundo Elomar Tambara, a versão de Lopes Neto “representa a consolidação de uma estratégia de reconquista do poder do catolicismo” no Rio Grande do Sul do início do século XX, época em que o catolicismo vinha perdendo força nessa região do país. Diz o pesquisador que, “com a Proclamação da República, a Igreja Católica, deixando de ter o caráter de religião oficial, apressou-se a ocupar todos os aparelhos ideológicos possíveis com o objetivo de plasmar, agora na prática, aquilo que detinha de direito”.



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