A primeira religião do mundo é a védica, uma das religiões que fazem parte do hinduísmo. Portanto, se quisermos simplificar as coisas, podemos dizer que a religião mais antiga da humanidade é uma das vertentes do hinduísmo. Estima-se que o início da redação dos textos védicos tenha ocorrido por volta do ano 1.500 a.C., ou seja, muito antes do surgimento de qualquer das outras religiões que conhecemos hoje.
Mas antes do surgimento dos textos, os saberes sagrados neles contidos já existiam e eram transmitidos oralmente de geração a geração. Ou seja, a religião védica é ainda mais antiga que seus escritos sagrados, e todas as correntes do hinduísmo que conhecemos atualmente derivam desse tronco comum.
Os textos védicos ainda hoje são considerados sagrados pelos hindus das mais diversas vertentes.
Hinduísmo: um mesmo nome para várias religiões
Ao contrário do que muita gente pensa, o hinduísmo não é uma única religião. Trata-se de um conjunto de religiões, entre as quais a védica, a mais antiga de que se tem testemunho.
O equívoco vem de longe. Viajantes e missionários europeus do século XVI classificavam os indianos de “gentios” – o mesmo que idólatra ou aquele que segue uma religião pagã. Para esses homens ocidentais, tudo o que estivesse fora do mundo religioso até então conhecido (e o mundo religioso até então conhecido era composto pelo cristianismo, judaísmo e islamismo) era classificado como pagão.
Séculos mais tarde passou-se a usar o termo “hindu” para se referir à religião dos indianos. É daí que vem o nome hinduísmo.
Os teólogos Hans Waldenfels e Franz König, autores do Léxico das Religiões, chamam a atenção para dois aspectos importantes desse equívoco secular. O primeiro deles é que, como já deu para perceber, não foram os indianos que criaram o nome hinduísmo. O termo hindu é persa e já existia, mas se referia apenas aos habitantes do país por onde passa o Rio Indo. Portanto, na origem, o termo hindu significa indiano.
O segundo aspecto do equívoco é que, a partir do século XIX, o nome hinduísmo passou a ser usado para se referir à religião dos indianos, como se estes seguissem uma única crença.
A verdade é que o hinduísmo é um conjunto de crenças e tendências diferentes, algumas delas com relação entre si. Dá-se o nome de hinduísmo a uma coletividade de religiões, entre as quais o vixnuísmo, o xivaísmo, o xactismo, o neo-hinduísmo e a religião védica.
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A religião védica, a mais antiga do mundo
Também chamada de vedismo, essa religião é politeísta (ou seja, tem vários deuses) e foi levada ao Vale do Indo pelos arianos, povo seminômade provavelmente originário da Ásia Central, em meados do segundo milênio antes de Cristo. O que se conhece hoje dessas tribos que migraram para a Índia se encontra nos hinos aos deuses, ou textos védicos, escritos numa forma primitiva de sânscrito – chamado de sânscrito védico. São esses documentos que permitem determinar que o vedismo é a religião mais antiga não só da Índia, como do mundo.
Para ser mais exato, a religião védica é a mais antiga que chegou aos dias de hoje. Descobertas arqueológicas confirmam que a relação do ser humano com o sagrado e o despertar para ideias religiosas remontam ao Paleolítico, período da pré-história que se encerrou no ano 10 mil a.C.
Os hinos védicos: as escrituras sagradas mais antigas do mundo
São escrituras sagradas de louvor aos deuses. Contêm importantes saberes sacerdotais relativos aos rituais de sacrifício e revelam alguns aspectos das tribos arianas que professavam essa religião.
Essas antigas escrituras são divididas em quatro volumes: Rigveda, Samaveda, Yajurveda e Atharvaveda.
O mais antigo desses volumes é o Rigveda, que por sua vez está dividido em 10 livros, ou ciclos de cantos, compostos por mais de 10 mil estrofes. O Rigveda não é só o primeiro livro da religião védica. Trata-se do mais antigo texto religioso conhecido, e estima-se que essa escritura tenha sido concluída no ano 1.000 a.C. O prefixo Rig significa elogio, o que indica que esta coleção é formada por hinos de elogio aos deuses.
O Samaveda é composto por cânticos para serem usados pelos sacerdotes durante um ritual. O Yajurveda (também chamado de veda-sacrificial) é uma série de fórmulas que orientam as tarefas rituais, também executadas por um sacerdote. E o Atharveda, a última das quatro coleções, traz hinos com função mágica e destinados a solucionar problemas do dia a dia: doenças, maldições, desarmonia familiar etc.
Segundo Mircea Eliade, os hinos védicos “foram compostos para um público preocupado antes de tudo com os bens terrestres: saúde, longevidade, numerosos filhos, abundância de gado, riqueza”. Eram essas e outras dádivas que o indiano védico pedia aos deuses. Havia também a expectativa de entrar no mundo celeste, a morada dos deuses, após a morte.
Para isso, três obrigações deviam ser cumpridas. A primeira era estudar as escrituras sagradas. A segunda, oferecer sacrifícios animais aos deuses. E a terceira, criar filhos homens a quem seriam transmitidos os saberes relacionados aos rituais de sacrifício e toda a tradição religiosa védica.
Os rituais de sacrifício e a reciprocidade
A razão de ser dos textos védicos, segundo o estudioso das religiões Trevor Ling, são os rituais de sacrifício. Nesses cultos, os hinos tinham uma enorme importância.
Ling diz que é impossível saber exatamente como eram esses primeiros cultos védicos, já que não há informações suficientes para fazer tal reconstituição. O que sabe é que esses cultos eram feitos por uma elite sacerdotal (a serviço de uma aristocracia) e não eram abertos ao público, como em boa parte das religiões hoje em dia.
A finalidade principal desses cultos era a obtenção de dádivas dos deuses. Para isso, eram feitas oferendas – sacrifícios – a fim de se obterem os favores divinos. Está na base dessa relação entre homens e deuses na religião védica a ideia de reciprocidade. Ou seja: dar aos deuses para receber um presente, ou dádiva, em troca.
De acordo com os dados disponíveis, a coisa funcionava mais ou menos assim: através da intermediação dos sacerdotes, o adorador se dirigia ao altar, onde oferecia um sacrifício ao fogo sagrado. No geral, solicitavam-se dádivas de ordem material: descendentes, vitória em alguma batalha (já que estamos falando de uma aristocracia guerreira), mais cabeças de gado, boas colheitas etc.
Nesses cultos, os sacerdotes cuidavam de executar passo a passo todas as tarefas, com o objetivo de garantir a eficácia do ritual. Mais de um sacerdote participava de um culto e as funções sacerdotais eram divididas. Assim, um cantava os hinos, outro invocava o deus, outro organizava o sacrifício, tudo ao mesmo tempo.
Soma: a bebida sagrada
A bebida chamada soma era elemento essencial dos rituais védicos, pois se acreditava nos seus atributos sagrados. Consta nos textos védicos que a planta com que se faz a bebida nasce no pico das montanhas, bem perto do céu. Assim, o soma estabelece uma ponte entre o mundano e o sagrado.
Não há uma única espécie botânica utilizada ao longo do tempo. Mas, seja qual for o tipo de planta usado, a bebida produz efeitos especiais naquele a ingere. Sua absorção provoca êxtase, vigor e garante a longevidade. O soma tem amplos poderes. É só lembrar o que aconteceu com o dragão gigante depois que o deus Indra bebeu uma dose de soma.
“Bebemos o soma e nos tornamos imortais; tendo chegado à luz, encontramos os deuses. O que nos pode atualmente fazer a impiedade ou a malícia do mortal, ó imortal?”, diz um trecho do Rigveda. Atribui-se a essa bebida sagrada poderes incríveis: cura, fecundidade e força, tanto física quanto espiritual.
Curiosidade: não só o soma, mas outros aspectos da religião védica, como os sacrifícios rituais, foram usados pelo romancista Aldous Huxley no enredo de seu famoso livro Admirável Mundo Novo.
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Os deuses védicos (devas) mais importantes
Há um nome genérico, que vem do sânscrito, para os deuses do panteão védico: devas. Uma característica desse panteão é a de que ele é formado predominantemente por deuses masculinos, e esses seres geralmente aparecem associados às ideias de altura (céu), criatividade e autoridade (ou poder supremo).
Varuna: zelador da ordem
O deus soberano, ou Rei Universal (samraj), é Varuna. O poder de Varuna é tão grande que não há deus ou homem acima dele.
Ele é o criador da ordem universal, dos seres e das formas. No Rigveda, Varuna é descrito como o deus que “esticou a Terra como um açougueiro a uma pele, para que ela seja qual tapete ao sol”. Há outra passagem dessa escritura que diz que ele é o responsável por colocar o “leite nas vacas, a inteligência nos corações, o fogo nas águas, o Sol no céu, o soma sobre as montanhas”.
Varuna é conhecido por ser o zelador da ordem. Sempre que alguém sai da linha, lá está Varuna para restabelecer a retidão moral no mundo.
Ele vê tudo, sabe de tudo (onisciente), e nada, nem a mais ínfima ação, pode lhe escapar. Nenhum pecado ou crime, seja ele qual for, pode ser praticado sem ser visto pelos mil olhos de Varuna, que tem o poder mágico de, mesmo à distância, laçar as pessoas. O perdão a Varuna pode ser solicitado por meio de rituais de sacrifício.
Os hinos do Rgveda dedicados a Varuna têm um caráter de penitência. O adorador louva Varuna a fim de obter o seu perdão pelas faltas cometidas.
Indra: o guerreiro fecundador
Aproximadamente 250 hinos do Rigveda são dedicados a Indra, o que o torna o deus mais popular da mitologia védica. O cientista das religiões Mircea Eliade o descreve como “o herói por excelência, modelo exemplar dos guerreiros”. Ele é seguido por jovens guerreiros, seus discípulos.
Mas, além de um exemplo de guerreiro, Indra também é conhecido por sua capacidade incrível de fecundação, e por isso também é chamado de “senhor dos campos” ou “senhor da terra”. Ele controla as chuvas e a umidade.
O principal mito do deus Indra, narrado no Rigveda, temver exatamente com isso. Certa vez, um dragão enorme, chamado Vrtra, conseguiu armazenar toda a água do mundo numa enorme caverna ou oco que existia dentro de uma montanha. Mas o guerreiro Indra, diante daquele gigante, é tomado de tanto medo que corre para o mais longe possível daquele monstro.
Mas, após tomar o soma, uma bebida feita com plantas que possui poderes mágicos, o herói recobra sua coragem e decide entrar em ação. A batalha é difícil, mas um raio de Indra parte a cabeça do dragão, matando-o. E foi assim que toda a água voltou aos seus devidos lugares, formando os oceanos, os rios e os lagos.
Agni: o deus sacerdote ou deus do fogo
Segundo a mitologia védica, Agni nasceu no céu e chegou à Terra na forma de um relâmpago. Talvez por isso ele seja um mensageiro, responsável por fazer a conexão entre o céu (lugar dos deuses) e a Terra (lugar dos homens). Sem ele, as oferendas não chegariam aos seus destinatários.
Por ser um deus que representa o fogo, também se costuma identificá-lo com o Sol. Tal como o fogo, Agni sempre renasce, e por isso jamais envelhece.
Mas o que mais caracteriza o sempre jovem Agni, sem dúvida alguma, é a sua vocação sacerdotal. Ele é o modelo perfeito do sacerdote. Logo no começo do Rigveda há um hino dedicado a esse deus: “Eu canto Agni, o sacerdote, o Deus do sacrifício, o fazedor de oferendas que nos acumula de dádivas”.
O deus Agni era muito popular na época védica, período da história da Índia em que floresceram os textos védicos. Essa popularidade se explica pela crença de que ele poderia proteger contra doenças, maldições e quaisquer desgraças futuras.
Da mesma forma que transporta os sacrifícios aos deuses, através do fogo sacrificial, também se atribui a Agni a condução dos mortos ao céu, por meio da cremação, ou o fogo de Agni.
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